É mais fácil escrever sobre como foi a viagem do que escrever sobre o que significa viajar… Ainda assim, aceitei o desafio de escrever sobre este tema. Eu gosto de flexionar o verbo “viajar” em todos os tempos:  do passado, no presente e num futuro próximo.

Já viajei de muitas formas, recorrendo a vários meios de transporte. Sozinha ou acompanhada. Em família ou com amigos. Em lazer ou em trabalho. Houve um tempo em que me deixei ir ao sabor de roteiros já elaborados, com paragens e percursos meticulosamente cronometrados e previamente delineados. Nos últimos anos tenho eu elaborado os meus roteiros. Esforço-me por colar os meus desejos aos itinerários e parto para o mundo. Na minha bagagem levo frequentemente as palavras de um livro que li, as imagens de um filme que vi, os ecos de uma sugestão que me deram.

Tive muitas vezes a sorte de chegar a lugares e de ser recebida como se a eles pertencesse desde sempre. O contacto próximo com os locais faz toda a diferença. São eles que nos mostram as cores escondidas, as menos óbvias, de um lugar. Porque às vezes tem-se a tendência de reparar naquilo que é luminoso, colorido, quando a paleta da realidade também contém os cinzentos, os tons pardos, as luzes intermitentes e fracas, visíveis apenas aos olhos atentos. São eles ainda que sabem onde está a centelha no mais recôndito dos lugares. Pela sua boca ouço atentamente as histórias dentro da grande História. E eu gosto muito disso, de adotar essa perspetiva e de viver nos lugares seguindo as rotinas dos seus habitantes, que passam a ser minhas também. E  com elas vou desenhando um mapa dentro de mim.

Viajar e mapas interiores

Acho que é isto – viajar é construir mapas interiores. Com coordenadas muito próprias, pessoais, íntimas. Que fazem os mapas e nos vão fazendo enquanto viajamos. Não viajo para fugir a nada, não viajo para sair de mim própria. Viajo para ser eu noutros lugares. E com isso cresço, redescubro-me, regresso a mim. Vou ao encontro de outros para também me conhecer melhor. Daí eu dizer que se trata de mapas íntimos, desenhados a emoções, afetos, experiências, palavras trocadas, sabores experimentados, aromas sentidos. É só preciso estar atento e predisposto a alargar as coordenadas desse mapa.

Estes mapas pessoais têm áreas e escalas como aqueles em papel. Mas não coincidem. Ou muito raramente coincidem. Até porque estão em constante reelaboração. A escala é outra e oscila muito nas suas proporções. O mundo de cada um tem um mapa próprio. No meu, a capital do país da minha infância era o Porto. A primeira grande cidade que me foi dada a conhecer, pelas mãos dos meus pais e por razões familiares. O tempo desvendou-me os seus recantos, os seus mistérios e hoje é uma das grandes capitais das minhas melhores memórias. Se pensar no Alentejo, uma das regiões que conheci bem pequena ainda, essa planície tem dimensões que não acabam mais, tão ilimitadas me pareceram a caminho do Algarve com os meus pais nos anos 70. É que do norte até lá chegarmos, num tempo sem vias rápidas, sem autoestradas e carros velozes, a viagem demorava uma noite inteira e toda a manhã. O Alentejo começou por ser bem maior que o deserto do Sahara marroquino onde já dormi.

Moscovo

Ao lembrar-me de Moscovo e das suas largas avenidas, tenho a certeza de que Nova Iorque, que eu ainda não conheço, é pouco maior que um ponto prateado (cor que associo ao topo dos arranha-céus…) num continente longínquo onde eu ainda não estive. Na capital russa, há avenidas que só se atravessam passando por baixo delas, em túneis tristes de ligação ao outro lado e estações de metro que parecem amplos e belos salões de baile.

Paris

Paris, a minha primeira capital europeia fora de Portugal, há de ser sempre a meus olhos  a maior. Aos 16 anos, o embate com esta cidade foi transformador. E as memórias que guardo do meus inúmeros regressos a esta cidade são maravilhosas. É uma cidade que não acaba, descubro sempre um ponto que me escapou desde a última vez ali. Sinto sempre vontade de lá voltar. Conheço outras partes de França e gosto de pensar que o mar que conheço na Bretanha banha a capital e que a luz do céu da Côte d`Azur cobre também os boulevards parisienses.

Noruega

A Noruega, que não é uma ilha, é-o no meu mapa. De tão singular me pareceu, com fiordes e glaciares gelados de uma cor azul que no resto do meu mundo habitualmente encontro no mar ou no céu. Um país onde as árvores também crescem nos telhados das casas, onde o verde dos bosques é único no meu imaginário, onde a natureza se aproxima das paisagens idílicas dos sonhos e dos filmes. Portanto, só pode ser uma ilha, rodeada de verde por todos os lados.

Itália

Já Itália me parece um país cujos limites estarão sempre por definir, já que quanto mais dela conheço, mais premente se torna um regresso. A laguna de Veneza é de certeza bem maior do que a bacia de rio Nilo. Isto porque da ilha da Giudecca, onde fiquei das últimas vezes que estive na cidade, as águas ultrapassavam o que os meus olhos abarcavam. Eles sabiam que o que viam era muito pouco em relação ao que existe entre as fachadas dos palácios, por baixo das inúmeras pontes que  percorrem a cidade de Veneza e que nos ajudam a percorrê-la. A travessia de vaporetto até Torcello e Burano deu-me uma ideia dessa dimensão, pontuada por Ilhas que são retalhos de uma superfície terrestre que ali se revela de uma fragilidade que não encontrei até agora em mais nenhum lugar.

Granada

Há ainda lugares que não são totalmente visíveis. No meu mapa existe a cidade de Granada. Sei bem onde foi o meu primeiro almoço na cidade – num restaurante marroquino que facilmente localizo olhando para o mapa da cidade. Dali, sei o caminho até à Alcaiceria, o antigo mercado árabe onde me perdi durante uma manhã. Também sei chegar até à belíssima calle del Darro, que naqueles dias da Páscoa estava ainda mais bonita. Outra coisa é o Alhambra. Conhecê-lo era um sonho antigo. Os meus pais sabiam desse sonho e, por isso, pegaram em mim e tornaram-no realidade. Aquela Páscoa de 2014 ficou marcada por essa viagem até um local rendilhado de sonhos e pedras claras e de uma luz única. De silêncios e de sons de água que nem sempre se percebe de onde vêm. De árvores que dão flores e frutos com perfumes encantatórios. Este lugar assim é de uma consistência tão diáfana que dificilmente se representa num mapa.

Valência

E depois há as distâncias. Que se medem por pessoas. A cidade espanhola de Valência está muito próxima de mim. Ainda que na geografia não estivesse. Tudo por causa de uma viagem a Budapeste e a Praga com um grupo encantador de espanhóis. Seis ficaram para sempre na minha memória afetiva, de tão cúmplices nos tornámos. Por isso as regiões de Valência e da Extremadura ficam tão próximas uma da outra e de mim. Zagreb é outro exemplo: a minha amiga A., apaixonada por Portugal e pela literatura portuguesa, é natural da capital croata e foi pelos olhos dela que a conheci, assim como as belezas do país – os parques, os lagos, as cidades fortificadas e com ruínas romanas, as praias de água turquesa.

Itália e Piemonte

Em mim Itália começou por ter como centro a região da Emilia Romagna. Foi a partir da casa de uma família romagnola, acolhida como se fosse parte dela,  que conheci cidades que foram no seu passado e a seu modo uma espécie de “caput mundi” : Florença, Bolonha, Veneza. A seguir veio a vontade de conhecer as outras, a sul e a norte. E de todos os países que conheço, Itália é, sem dúvida, o maior. Com Turim como capital. As minhas recentes incursões no Piemonte e o fascínio que delas nasceu colocou a cidade no coração do país. É, por isso, a capital da minha Itália. Apesar de Roma e do meu desejo de lá voltar e do Castel Sant`Angelo, da maravilhosa cúpula do Panteão e da sublime Piazza Navona (talvez seja a minha praça preferida de todas as praças do meu mundo) e das belas margens do Tibre, por agora Turim é a capital. E Itália é o país mais próximo do meu.

Eu não coleciono países nem cidades. Eu não tenho pressa de alargar o meu mapa, a minha única ambição é aprofundá-lo e reescrevê-lo, porque na sua reescrita reside parte da sua riqueza e da minha felicidade. Por isso gosto de regressos, de reencontros e de repetir momentos de felicidade. Gosto de viagens lentas, repetidas e inscritas no mais profundo de mim. E sempre com elas no meu íntimo parto para qualquer lugar do mapa.

Agradeço imenso à Ana Sofia Melo por ter aceite o meu desafio de escrever sobre o que é viajar. Ela tem um blog muito interessante e cuja consulta recomendo: o Cartografia Pessoal.

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