No norte da ilha caboverdiana de Santiago, a cerca de 60 km da cidade da Praia, encontra-se o Tarrafal. É uma zona árida que se estende até ao mar e onde encontramos a melhor praia de areia branca da ilha. Não muito longe desta praia avistamos o Monte Graciosa e um pouco mais afastado a Serra Malagueta, com as suas magníficas escarpas. É uma paisagem imponente que de certa forma ainda acentua mais a sensação de desolamento e de solidão que se sente neste lugar.
Quando eu cheguei de Hiace (táxi coletivo) da agitada cidade da Praia senti um distanciamento “do mundo” muito maior que as duas horas de viagem me possibilitaram. É como se tivesse chegado a uma terra abandonada.
O meu objetivo principal no Tarrafal era ir ao Campo de Concentração e por isso parei em Chão Bom. Esta é uma das regiões mais pobres do concelho e onde vive um terço da população do Tarrafal. A população sobrevive com dificuldade com o que a terra e o mar lhe vai dando, não existindo praticamente nenhuma oferta cultural, nem sequer um templo religioso para os crentes. Imagino o desolamento que os reclusos sentiram quando chegaram a este local…
1ª fase: Presos políticos de Portugal
Foi no ano de 1936. Portugal estava em pleno regime ditatorial do Estado Novo e Cabo Verde era uma colónia portuguesa. Oliveira Salazar, o ditador português, pretendia estabilidade política e por isso criou vários instrumentos de repressão. Neste contexto surgiu a vontade de encarcerar todos os que de alguma forma estavam contra o regime, à semelhança do que acontecia noutros países do mundo.
A escolha do Tarrafal
O Tarrafal pareceu perfeito como local para enviar os presos políticos e sociais. Era como se fosse uma prisão dentro de outra. Na altura da construção do Campo era uma zona muito isolada (sem vias de comunicação), com graves problemas de fornecimento de água, com vários períodos de fome, sem meios de subsistência e durante vários séculos completamente abandonada até pelo próprio estado. Salazar pretendia que o aspeto desolador da região provocasse um sentimento de desânimo e desencorajamento.
Com inspiração nazi, Salazar pensou então criar uma prisão especial para indivíduos que teriam de cumprir penas consideradas “especiais”. Assim sendo, em 1936 o Campo Penal, como era conhecido na altura, recebeu os primeiros condenados a pena de desterro pela prática de crimes políticos e prisioneiros de delitos comuns que em Portugal se mostraram indisciplinados. Uma vez que o Tarrafal era tão isolado na altura, tornava-se extremamente diícil a comunidade internacional ter conhecimento dos maus tratos que eram praticados.
Inicialmente as barracas eram de lona (a única exceção era a cozinha construída com tijolos) e não havia corrente elétrica. Mais tarde é que começaram a ser construídos os edifícios de pedra, sendo de salientar um deles, a que deram o nome de frigideira. Era o inferno.
A frigideira
A frigideira era uma pequena construção, completamente fechada, com teto e chão de cimento e um pesado portão de ferro. Todos aqueles que eram castigados eram enviados para aqui. Estava completamente exposta ao sol, pelo que no seu interior a temperatura era muito elevada…No Campo Penal existia um médico, que chegou a admitir “não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”.
A Colónia Penal ficou conhecida por Campo de Morte Lenta, dadas as condições horríveis que os presos tinham de viver e a inevitabilidade que os esperava. Os presos eram privados de medicamentos e de água potável, tinham muitas vezes de comer carne já deteriorada e encontravam-se sujeitos a permanentes maus tratos e em algumas alturas do ano andava por lá o mosquito da malária. Era um regime de morte lenta…
Do total de 340 portugueses que lá estiveram, 34 morreram. A pressão internacional obrigou Salazar a encerrar o Campo Penal em 1954.
2ª fase: Campo de Trabalho de Chão Bom
A Colónia Penal foi reaberta em 1961, com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom. Por aqui passaram 230 nacionalistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Nesta 2ª fase do Campo a frigideira foi substituída pela holandinha, que ainda hoje pode ser visitada. Era uma cela com tamanho muito reduzido, localizada no interior de uma outra estrutura.
Com a chegada da Revolução dos Cravos em Portugal (a 25 de abril de 1974), o regime ditatorial de Salazar foi deposto e as portas do Campo de Trabalho de Chão Bom foram abertas. Todos os presos foram libertados.
Oito meses depois, a prisão voltou a receber presos, que desta vez eram apenas cabo-verdianos. Em 19 de julho de 1975 o campo foi totalmente extinto, tendo tido já outras utilizações diferentes até que em 2009 foi aberto como Museu da Resistência.
3º fase: Museu da Resistência
Quando aqui cheguei não havia ninguém. À medida que me fui aproximando da porta e passando por casas que me pareciam abandonadas, encaminharam-se na minha direção várias crianças pequenas. Eu ia com um carrinho de bebé, com a minha filha, e a curiosidade era enorme. Durante os oito dias em que estive na ilha de Santiago não vi nenhum outro carrinho. Apenas nos últimos dias me apercebi disto.
Afinal as casas que pareciam abandonadas, não estavam. As antigas habitações dos ex-guardas que trabalhavam no Campo de Concentração foram ocupadas por famílias que viviam na rua.
Quando cheguei ao portão principal do Campo a primeira coisa que me chamou à atenção é o fim da linha de comboio, o que confere a este local um peso de brutal realidade. Segundo o que consegui perceber antigamente existia uma linha de comboio desde o Campo até à horta, que se encontrava a uns kilómetros. Um comboio transportava os alimentos.
A minha visita
No interior continuou sem haver qualquer vestígio de turistas. Visitei em silêncio todas as estruturas e as suas memórias. Existe sinalização a indicar qual era a sua finalidade mas no interior das estruturas não existe nada. Encontram-se completamente vazias.
Percorri as várias celas, as dos presos políticos comuns, as dos cabo-verdianos e as dos angolanos e guineenses. Não pretendiam que os presos de origem diferente tivessem contacto. Andei também pela sala de leitura, pela cela disciplinar onde existem inscrições de quem por lá passou e que torna tudo tão real, pela oficina, pelo posto socorro, pelo refeitório, pela lavandaria e pela cozinha.
Para mim viajar também é isto. E por isso, na minha opinião, numa visita à ilha de Santiago é obrigatório visitar o Tarrafal e conhecer um pouco mais da sua história e do Campo que tornou esta localidade famosa. É a memória de uma época negra da história da Humanidade. Que o Homem nunca esqueça o que já foi feito e nunca mais o repita.
Dedico este texto à memória de todos os que sofreram no Tarrafal.
Dicas para viajar até ao Tarrafal
(Se fizer as suas reservas através destes links, não paga mais nada por isso e eu ganho uma pequena comissão, o que é determinante para eu continuar a escrever sobre viagens. Obrigada!).
Como chegar: Se for de Lisboa como eu, o melhor é apanhar um avião direto para a cidade da Praia. Já na cidade o melhor é ir até ao mercado e apanhar uma Hiace, um táxi coletivo, que é a forma mais utilizada dos habitantes da ilha se movimentarem. O percurso demora cerca de duas horas desde que sai da Praia e faz as paragens que tiver de fazer, depende dos pedidos dos passageiros. Quando sair no Tarrafal, pergunte a que horas é a última Hiace que regressa à Praia. Se não apanhar, pode não ser fácil regressar no mesmo dia.
Onde dormir: Depende do percurso que fizer na ilha de Santiago. Eu preferi montar “base” na Praia para ter acesso às Hiaces qua partem do mercado e que vão para (quase) todo o lado da ilha.
Se optar por ficar na Praia como eu, recomendo dormir no Elegant Modern Blue Apartment, se preferir dormir no Tarrafal opte pelo Vista Mar.
Ha pequenas imprecisões nesta reportagem.Estive neste local de julho de 1974 e novembro do mesmo ano,enquanto cumpria o serviço militar.O meu maior desejo era voltar aquele local paradisíaco onde passei talvez os melhores dias da minha vida, mas o meu país não me deixa….
Olá Vitor 🙂
Diga-me por faor quais. Toda a informação que tenho aqui foi devidamente verificada em fonte oficial do próprio país de Cabo Verde.
Obrigada.
Que triste ver tudo isso, chega a doer no coração 🙁 Mas ótimo post, muito informatvo
(Mais uma) excelente reportagem. Cabo Verde está há muito no meu horizonte. E o Tarrafal está nas prioridades. Bela partilha!
Excelente reportagem..o Tarrafal merece uma visita, quando for a Cabo Verde e visita obrigatória
Excelente reportagem 🙂 ainda não tivemos oportunidade de visitar mas certamente o faremos num futuro próximo!
Que viagem alucinante! Tenho uma paixão bizarra por campos de concentração e fiquei com imensa vontade de ir a este.
É me tão difícil crer que haviam pessoas a serem presas nestas condições por darem a sua opinião ou lutarem pelos seus direitos. Acho que é por isso que gosto de visitar sitios como estes, para dar valor ao que temos hoje em dia.
Este tipo de lugar é tão brutal que custa-nos acreditar que ele é mesmo real. Já visitei outros museus de resistência – Alemanha, Argentina, Brasil – e os modelos sádicos e cruéis se repetem… O pior de tudo é que a crueldade humana está longe de terminar. Por isso, não podemos deixar de manter estes locais para (numa incoerência) nos humanizarmos.
Eu admiro quem visita lugares assim porque eu mesma não consigo. Me afeta muito, sabe? É triste pensar no que o ser humano é capaz de fazer. Ao mesmo tempo, entendo a importância de se manter esses locais e tentar ensinar as pessoas a olhar pro passado pra não repetir o erro.
Abraços.
Eu admiro quem visita lugares assim porque eu mesma não consigo. Me afeta muito, sabe? É triste pensar no que o ser humano é capaz de fazer. Ao mesmo tempo, entendo a importância de se manter esses locais e tentar ensinar as pessoas a olhar pro passado pra não repetir o erro.
Abraços.
O prisioneiro do Tarrafal, sofreu a revolta, a saudade do seu País e dos seus entes queridos, sofreu a desolação, o medo, o rancor, a dor da separação, do Adeus, vexames, ultrajes, maus tratos físicos continuados, pesadelos, atormentações de índole diversa e mais macabra. O prisioneiro morreu sufocado por sentimentos devoradores, agonizou, chorou sangue mas morreu com os olhos abertos talvez imaginando uma flor rubra na aurora resplandecente de Abril.
Estou a escrever uma tese sobre oS regimeS totalitárioS espanhol e Português e consultei a sua informação. Muito grata. Continue. Que grande guerreira. Um abraço a essa família linda. Que o vírus se vá para que voltemos todos a poder viajar, em especial quem faz tão nobre trabalho! Força.
Olá Margarida 🙂
Fico mesmo contente que tenha gostado!
Muito, muito obrigada, que palavras tão simpáticas 🙂
Em novembro vou percorrer os seus passos.
Olá Fernanda 🙂
Que bom… Santiago é uma ilha que vale mesmo a pena visitar. Tarrafal incluído!
Diga-me se precisar de ajuda.